ANOREXIA

ANOREXIA

terça-feira, 18 de novembro de 2014

ESTUDO PSICANALITICO SOBRE A ANOREXIA PARTE II


A primeira observação de Lacan acerca da anorexia data de 1935 e, não por acaso, sucedeu de imediato sua interrogação sobre até onde dever-se-ia conduzir as análises com crianças. Inicialmente, ele comenta que um sintoma isolado por uma terapêutica breve poderia ter a mesma função de obstáculo da vegetação que, embora presa a um galho morto, encontra-se ainda viva a deslizar no meio de um curso d'água. Em um sintoma, como em uma ramagem, os mais diversos materiais podem vir a prender-se, observa ele nesta ocasião, para acentuar, logo em seguida, a invariabilidade da existência de fantasias fálicas nos sujeitos anoréxicos, citando inclusive alguns sonhos em apoio de sua constatação. Ainda nessa sessão, afirmou que, durante o período em que trabalhara num ambulatório público, havia encontrado aproximadamente trinta casos de anorexia mental em meninos judeus.
Em nossa leitura, o que ganha maior relevo na obra de Lacan é a associação entre a anorexia e o horror que todo sujeito experimenta diante do saber inconsciente, sempre movido por um ponto de ignorância. De acordo com suas elaborações, as crianças e adultos anoréxicos sofrem de um aprisionamento à demanda do Outro materno e recusam-se a descobrir o que pode significar o ato de comer. Assim, o não querer pensar o que significa o ato de comer termina por conduzir o sujeito para o que Lacan define como "comer nada". Este ato – que faz presente a necessidade de que haja uma falta – à diferença do puro negativismo, demonstra, no limite, uma disjunção entre saber e gozo. Por mais que os significantes sejam também veículos de gozo, a construção de um saber, isto é, de um encadeamento de significantes, produz a redução de um gozo opaco originário.
São bem conhecidos os comentários de Lacan (1958) sobre "o homem dos miolos frescos", que, visando libertar-se de uma inibição intelectual e da ideia fantasmática de que era um plagiário, procura Ernst Kris na condição de segundo analista. Enquanto Kris interpretou que o paciente apenas se defendia de um impulso a plagiar, acreditando-se um plagiário por antecipação, desse modo analisando a defesa antes da pulsão, a interpretação de Lacan seguiu outra linha. Para ele, este homem, que saía de suas sessões de análise em busca dos restaurantes que oferecessem miolos frescos em seu cardápio, mas que os comia tão somente com os olhos, sofria de uma "anorexia mental", quer dizer, de uma debilidade quanto ao desejo que faz a ideia vigorar. Seu pai não fora um homem de desejo, ou de ideias, e o avô, embora ilustrado, certamente não lhe transmitira o apreço pelas mesmas. Portanto, o paciente roubava sim, posto que o dizia, porém o problema é que ele tanto comia quanto "roubava nada".
A anorexia, para Lacan, não pode ser vista como causa, pois é a consequência da relação do sujeito com o Outro, precisamente, com o Outro do saber. A criança que se recusa a satisfazer a demanda da mãe, demanda-lhe que tenha um desejo fora dela, que se mostre em falta, que a decepcione enfim, porque, em algum nível, ela sabe que o objeto da satisfação não é da mesma ordem do que seria um dom de amor. A ação que enuncia: "Eu como nada" seria, então, a prova máxima de que a atribuição ao Outro de um desejo de saber se faz necessariamente acompanhar por um "Eu estou fora dessa".
Por meio da anorexia, a criança, o jovem ou o adulto afastam-se com ódio do Outro da demanda, que acredita saber tudo sobre cuidados de saúde e alimentação. Na qualidade de sujeitos, podemos dizer que eles entram numa modalidade de laço social em que o gozo se deixa ver como algo da ordem de uma privação, assim como o desejo se sustenta na margem estreita que o separa de necessidade, porquanto é, sobretudo, desejo de não desejar. Porém, desejo ainda. Massimo Recalcati (2003) insiste em que a eleição anoréxica do comer nadaconsegue tornar este nada o objeto separador do Outro. Em nossa experiência, é também o que encontramos frequentemente: Glória, mãe de Alice, uma jovem de 15 anos internada numa clínica psiquiátrica, conta que ao perguntar à filha sobre o que gostaria de comer, ouviu uma resposta aterradora: "Quero nada". Uma afirmativa que irrompe na mãe como uma bofetada. Vera, mãe de outra jovem, revela que a doença de sua filha trouxe um sentimento de perda indescritível. "Sempre imaginei meu mundo perfeito", enuncia, "mas, desde que minha filha começou com essa história de não querer comer, ele caiu. Sinto-me agora sem chão". A anoréxica come o nada e se oferece, pela via da identificação, a ser, ela própria, o vazio. "Tomo laxante para esvaziar tudo o que há dentro de mim", diz Alice. Seu corpo transforma-se em um semicadáver: deixa-se consumir para abrir no Outro materno uma falta. Insaciável e devoradora, se assim pudermos nos expressar, a mãe tem a tendência a reduzi-la a objeto real do próprio corpo. Por meio de um "dizer não" ao imperativo de comer, Alice institui uma diferença entre a demanda do alimento, o que o outro tem, objeto da necessidade, e a demanda de amor, orientada em direção à falta que há no Outro.
Mas há um outro "nada" anoréxico, caracterizado pela gravidade do sintoma, embora não se trate, necessariamente, de estrutura psicótica (Recalcati, 2004, p. 169). Fala-se, então, na existência de uma "dimensão psicótica", por estar em jogo um "nada" que diz respeito ao Outro do gozo, diferentemente do primeiro que está em relação com o Outro do desejo. Nestes casos, a inclinação à passagem ao ato requer muita cautela do analista. Pedro desenvolveu um quadro de anorexia com 22 anos, quando começou a trabalhar na profissão escolhida por seu pai. Ao longo de seu tratamento analítico, interrompido abruptamente por terceiros, dizia sempre: "Optei pela anorexia porque se trata de uma morte lenta, indolor, até mesmo agradável". A cada corrida e/ou jejum, sentia-se vitorioso e em êxtase, pois indicavam um empuxo do corpo à própria destruição. Com a interrupção da análise, Pedro passa a ser assistido apenas pela psiquiatra e sua equipe cognitivo-comportamental. Após um ano deste último tratamento, retornam os sintomas restritivos da anorexia e há uma tentativa de coibi-los por parte da equipe que redobra a vigilância alimentar do paciente. Numa manhã, em que as coisas pareciam mais calmas, Pedro dribla os profissionais que cuidavam dele e faz uma séria tentativa de suicídio. Ao sair da clínica em que esteve internado, procura a ex-analista. Na entrevista, relata o que o levou à passagem ao ato nos seguintes termos: "Não tive opção, depois que me forçaram a voltar ao trabalho que eu odiava e à situação de ser cuidado por enfermeiros que passaram a impedir minha morte lenta". A anorexia ainda era uma possibilidade de Pedro jogar com a recusa de se alimentar como um desejo.
A clínica torna mais evidente que comer pode não ser apenas uma manifestação da libido oral, mas também da pulsão de morte. Seu objetivo é alcançar um gozo que, não regulado pelo princípio do prazer, dispensa o alimento. Pode-se, então, dizer que a anorexia está exatamente no limite entre o funcionamento homeostático prazer/desprazer – no qual se pode tolerar determinado acúmulo de tensão – e uma modalidade de gozo, que pode ser letal.

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